Jornal Pires Rural - Há 13 anos revelando a agricultura familiar

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Senzala Moderna

Os trabalhadores chegam á Fazenda no lombo de um caminhão, depois de horas de viagem. Tão logo avistam a área a desmatar, iniciam a primeira tarefa: construir o próprio alojamento. Só aí podem descansar seus corpos esgotados em redes, protegidos do sol e da chuva por uma lona preta esticada em pedaços de pau. O dia-a-dia é duro e requer energia. Mas a fome jamais se sacia somente pelo arroz e feijão ingeridos religiosamente no almoço e no jantar. A água para cozinhar, lavar o copo e matar a sede provém da mesma fonte utilizada pelos animais que procuram aliviar o calor. Os maços de cigarro e os litros de aguardente comprados a preços superfaturados na venda  vão corroendo o esperado salário no fim do mês. Também está devidamente registrado em um caderninho o custo do transporte, que parecia gentileza do patrão. No final das contas, invertem-se os papéis. É o empregado quem deve ao empregador. Então só restam duas alternativas: labutar ou fugir.
No aniversário de 120 anos da canetada da Princesa Isabel, que acabou legalmente com a escravidão no Brasil, o número de pessoas que ainda hoje trabalham de maneira forçada em fazendas do interior do país não é nada desprezível.
Desde 1995, quando o governo federal reconheceu perante a Organização das Nações Unidas (ONU) a existência de escravos em seu território, mais de 27 mil pessoas já foram literalmente libertadas em operações dos chamados “grupos móveis” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Composta por fiscais e procuradores do Trabalho, além de policiais federais que garantem a segurança da expedição, uma blitz como essa é feita de surpresa e pode durar vários dias. Geralmente é motivada pela denúncia de alguém que escapou de uma fazenda a um sindicato ou a um centro de defesa de direitos humanos, que alertam as autoridades em Brasília. No ano passado, os números oficiais bateram recordes: 5.877 resgatados. Estatística que não deixa dúvida quanto á atualidade do problema.
Os escravagistas modernos não são pequenos produtores sem dinheiro para bancar o gasto com seus funcionários, como se poderia pensar. Ao contrário, investidores capitalizados e grupos empresariais de porte ainda teimam em recrutar trabalhadores desesperados, deixando de honrar seus direitos básicos. O objetivo é simples: elevar os lucros à enésima potência. Até representantes da linha de frente do poder público têm o dedo metido nessa ferida. É o caso do senador João Ribeiro (PR-TO) e do deputado federal Inicêncio Oliveira (PR-PE), para citar5 gente de peso na cena política nacional. Ambos estão envolvidos em processos na Justiça decorrentes de fiscalizações do grupo móvel que encontraram escravos em suas terras.
A identidade desses maus e ás vezes ilustres patrões só vem á tona graças á temida “Lista Suja” do MTE. Regulamentada pela portaria 540/2004, ela consiste num cadastro de empregadores flagrados pela prática desse crime, e é atualizada em média a cada seis meses. Na sua edição mais recente, disponível no site do ministério, ela torna público os dados de 189 pessoas físicas e jurídicas que incidiram nessas irregularidades. Para se ter noção do poder de fogo desses empregadores, uma das dez maiores fabricantes de produtos lácteos do país, a Leitbom, está na última divulgação. Assim como o Grupo Soares Penido, que controla a viação Pássaro Marrom, entre outras empresas.
Uma vez citado na Lista Suja, o infrator permanece por pelo menos dois anos. Se todas as pendências forem resolvidas, durante esse período, seu nome pode enfim ser retirado. Alguma Instituições Financeiras privadas também vêm trilhando o mesmo caminho, ao tachar a utilização de mão-de-obra escrava como fator de risco quando analisam pedidos de concessão de crédito. Em dezembro de 2005, o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) assinou uma declaração de intenções pela qual recomendava a seus associados a adoção de medidas de restrição a quem estivesse na Lista Suja.
Prova recente da ameaça á saúde econômica que o cadastro do MTE  representa a empreendimentos flagrados com trabalho escravo é o caso da usina Pagrisa, localizada no município de Ulianópolis, a 390 quilômetros de Belém (PA). No dia 30 de julho de 2007, o grupo móvel resgatou 1.064 cortadores de cana-de-açúcar da plantação que abastecia a destilaria, capaz de produzir 50 milhões de litros de álcool  por ano. Foi, simplesmente, a maior libertação de que se tem notícia desde que o combate a esse crime entrou  para agenda do Estado brasileiro.
Menos de uma semana após a fiscalização, a Pagrisa sofreu um golpe baixo ao perder um de seus principais clientes: nada mais, nada menos do que a Petrobras. A medida atendia á política de responsabilidade social da empresa, que nos contratos celebrados com seus fornecedores coloca cláusulas exigindo o total cumprimento de normas trabalhistas e sociais.
A decisão da Petrobras   de suspender a compra de álcool da Pagrisa não tirou o sono apenas dos donos da usina, mas ecoou também nos corredores do Congresso Nacional. Um dos passos mais significativos nessa direção aconteceu em maio de 2005, quando a OIT, em parceria com o Instituto Ethos e a Ong Repórter Brasil, lançou o pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Atualmente, mais de 100 empresas são signatárias do documento pelo qual se comprometem a afastar de suas cadeiras produtivas os insumos elaborados á custa de exploração desumana de mão-de-obra. Uma parcela expressiva do PIB nacional se engajou nessa luta, já que Petrobras, Vale, Pão de Açúcar, entre outras grandes corporações, aderiram á causa.
Estabelecer cláusulas em contratos de compra e venda, que prezam pelo respeito ao trabalho decente, é a medida mais comum. Só que algumas empresas vão além. A direção do Wal-Mart Brasil chegou a sentar á mesa com os frigoríficos que abastecem suas lojas para exigir que eles consultem a Lista Suja ao negociar com um pecuarista. Esse temor tem uma boa justificativa. A esmagadora maioria dos empregadores do cadastro do MTE se dedica á criação de bois. Um dos fornecedores, que mantinha relações comerciais suspeitas, foi barrado pela rede de hipermercados porque não se mostrou disposto a colaborar.
Os avanços conquistados no combate ao trabalho escravo desde o surgimento da Lista Suja levou outros setores da administração pública a imitar, no bom sentido, a iniciativa do MTE. No dia 22 de dezembro/07 , o Ministério do meio Ambiente (MMA) deu um presente de Natal adiantado aos ecologistas. A titular da pasta, Marina Silva, anunciou a criação de um plano para conter o desmatamento da Amazônia que vai monitorar 32 municípios considerados prioritários para a preservação da floresta. Um dos pilares dessa nova idéia consiste justamente na divulgação de uma lista com os nomes dos proprietários que derrubam árvores além do permitido por lei
Outro órgão que vai participar dessa empreitada é o instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ele vai ter a missão de atualizar o cadastro dos imóveis rurais localizados pelo MMA. Para regularizar sua situação, o fazendeiro será obrigado a apresentar coordenadas georreferenciadas de suas terras, o que permitirá ao poder público identificar se houve ou não desmatamento ilegal. Quem não se recadastrar ficará impedido de realizar qualquer transação com o imóvel. E aqueles que forem pegos com a boca na botija, devastando a Amazônia, entrarão numa nova Lista Suja.
Infelizmente, ainda vai levar um tempo até que sejam extirpadas todas as práticas ilegais que acontecem em lugares recônditos do Brasil, onde o Estado não faz nem sombra, e é historicamente incapaz de garantir direitos mínimos á população. A certeza de impunidade é um dos principais alimentos da sanha desses produtores que não medem esforços para lucrar mais e mais. Sujar seus nomes na praça tem se mostrado a única saída para educa-los.
Carlos Juliano Barros

Rolling Stone Brasil, fev/2008  

Matéria publicada originalmente na edição 58 Jornal Pires Rural, 15/03/2008-www.dospires.com.br]
Em comemoração aos 10 anos do início do Jornal dos Pires, logo acrescentado o Rural, tonando-se Jornal Pires Rural, estaremos revendo algumas das matérias que marcaram essa década de publicações, onde conquistamos a credibilidade, respeito e sinergia com nossos leitores e amigos. 
Quase sem querer iniciamos um trabalho pioneiro para a área rural de Limeira e região, fortalecendo e valorizando a vida no campo, que não é mais a mesma desde então…

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Logo

Logo
Há 13 anos revelando a agricultura familiar