Os
trabalhadores chegam á Fazenda no lombo de um caminhão, depois de horas de
viagem. Tão logo avistam a área a desmatar, iniciam a primeira tarefa:
construir o próprio alojamento. Só aí podem descansar seus corpos esgotados em
redes, protegidos do sol e da chuva por uma lona preta esticada em pedaços de
pau. O dia-a-dia é duro e requer energia. Mas a fome jamais se sacia somente
pelo arroz e feijão ingeridos religiosamente no almoço e no jantar. A água para
cozinhar, lavar o copo e matar a sede provém da mesma fonte utilizada pelos
animais que procuram aliviar o calor. Os maços de cigarro e os litros de
aguardente comprados a preços superfaturados na venda vão corroendo o esperado salário no fim do mês.
Também está devidamente registrado em um caderninho o custo do transporte, que
parecia gentileza do patrão. No final das contas, invertem-se os papéis. É o
empregado quem deve ao empregador. Então só restam duas alternativas: labutar
ou fugir.
No
aniversário de 120 anos da canetada da Princesa Isabel, que acabou legalmente
com a escravidão no Brasil, o número de pessoas que ainda hoje trabalham de
maneira forçada em fazendas do interior do país não é nada desprezível.
Desde
1995, quando o governo federal reconheceu perante a Organização das Nações
Unidas (ONU) a existência de escravos em seu território, mais de 27 mil pessoas
já foram literalmente libertadas em operações dos chamados “grupos móveis” do Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE). Composta por fiscais e procuradores do Trabalho,
além de policiais federais que garantem a segurança da expedição, uma blitz
como essa é feita de surpresa e pode durar vários dias. Geralmente é motivada
pela denúncia de alguém que escapou de uma fazenda a um sindicato ou a um
centro de defesa de direitos humanos, que alertam as autoridades em Brasília. No ano
passado, os números oficiais bateram recordes: 5.877 resgatados. Estatística
que não deixa dúvida quanto á atualidade do problema.
Os
escravagistas modernos não são pequenos produtores sem dinheiro para bancar o
gasto com seus funcionários, como se poderia pensar. Ao contrário, investidores
capitalizados e grupos empresariais de porte ainda teimam em recrutar
trabalhadores desesperados, deixando de honrar seus direitos básicos. O
objetivo é simples: elevar os lucros à enésima potência. Até representantes da
linha de frente do poder público têm o dedo metido nessa ferida. É o caso do
senador João Ribeiro (PR-TO) e do deputado federal Inicêncio Oliveira (PR-PE),
para citar5 gente de peso na cena política nacional. Ambos estão envolvidos em
processos na Justiça decorrentes de fiscalizações do grupo móvel que
encontraram escravos em suas terras.
A
identidade desses maus e ás vezes ilustres patrões só vem á tona graças á
temida “Lista Suja” do MTE. Regulamentada pela portaria 540/2004, ela consiste
num cadastro de empregadores flagrados pela prática desse crime, e é atualizada
em média a cada seis meses. Na sua edição mais recente, disponível no site do
ministério, ela torna público os dados de 189 pessoas físicas e jurídicas que
incidiram nessas irregularidades. Para se ter noção do poder de fogo desses
empregadores, uma das dez maiores fabricantes de produtos lácteos do país, a
Leitbom, está na última divulgação. Assim como o Grupo Soares Penido, que
controla a viação Pássaro Marrom, entre outras empresas.
Uma
vez citado na Lista Suja, o infrator permanece por pelo menos dois anos. Se
todas as pendências forem resolvidas, durante esse período, seu nome pode enfim
ser retirado. Alguma Instituições Financeiras privadas também vêm trilhando o
mesmo caminho, ao tachar a utilização de mão-de-obra escrava como fator de
risco quando analisam pedidos de concessão de crédito. Em dezembro de 2005, o
presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) assinou uma declaração
de intenções pela qual recomendava a seus associados a adoção de medidas de
restrição a quem estivesse na Lista Suja.
Prova
recente da ameaça á saúde econômica que o cadastro do MTE representa a empreendimentos flagrados com
trabalho escravo é o caso da usina Pagrisa, localizada no município de
Ulianópolis, a 390
quilômetros de Belém (PA). No dia 30 de julho de 2007, o
grupo móvel resgatou 1.064 cortadores de cana-de-açúcar da plantação que
abastecia a destilaria, capaz de produzir 50 milhões de litros de álcool por ano. Foi, simplesmente, a maior
libertação de que se tem notícia desde que o combate a esse crime entrou para agenda do Estado brasileiro.
Menos
de uma semana após a fiscalização, a Pagrisa sofreu um golpe baixo ao perder um
de seus principais clientes: nada mais, nada menos do que a Petrobras. A medida
atendia á política de responsabilidade social da empresa, que nos contratos
celebrados com seus fornecedores coloca cláusulas exigindo o total cumprimento
de normas trabalhistas e sociais.
A
decisão da Petrobras de suspender a
compra de álcool da Pagrisa não tirou o sono apenas dos donos da usina, mas
ecoou também nos corredores do Congresso Nacional. Um dos passos mais
significativos nessa direção aconteceu em maio de 2005, quando a OIT, em
parceria com o Instituto Ethos e a Ong Repórter Brasil, lançou o pacto Nacional
pela Erradicação do Trabalho Escravo. Atualmente, mais de 100 empresas são
signatárias do documento pelo qual se comprometem a afastar de suas cadeiras
produtivas os insumos elaborados á custa de exploração desumana de mão-de-obra.
Uma parcela expressiva do PIB nacional se engajou nessa luta, já que Petrobras,
Vale, Pão de Açúcar, entre outras grandes corporações, aderiram á causa.
Estabelecer
cláusulas em contratos de compra e venda, que prezam pelo respeito ao trabalho
decente, é a medida mais comum. Só que algumas empresas vão além. A direção do
Wal-Mart Brasil chegou a sentar á mesa com os frigoríficos que abastecem suas
lojas para exigir que eles consultem a Lista Suja ao negociar com um
pecuarista. Esse temor tem uma boa justificativa. A esmagadora maioria dos
empregadores do cadastro do MTE se dedica á criação de bois. Um dos
fornecedores, que mantinha relações comerciais suspeitas, foi barrado pela rede
de hipermercados porque não se mostrou disposto a colaborar.
Os
avanços conquistados no combate ao trabalho escravo desde o surgimento da Lista
Suja levou outros setores da administração pública a imitar, no bom sentido, a
iniciativa do MTE. No dia 22 de dezembro/07 , o Ministério do meio Ambiente
(MMA) deu um presente de Natal adiantado aos ecologistas. A titular da pasta,
Marina Silva, anunciou a criação de um plano para conter o desmatamento da
Amazônia que vai monitorar 32 municípios considerados prioritários para a preservação
da floresta. Um dos pilares dessa nova idéia consiste justamente na divulgação
de uma lista com os nomes dos proprietários que derrubam árvores além do
permitido por lei
Outro
órgão que vai participar dessa empreitada é o instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra). Ele vai ter a missão de atualizar o cadastro dos
imóveis rurais localizados pelo MMA. Para regularizar sua situação, o
fazendeiro será obrigado a apresentar coordenadas georreferenciadas de suas
terras, o que permitirá ao poder público identificar se houve ou não
desmatamento ilegal. Quem não se recadastrar ficará impedido de realizar
qualquer transação com o imóvel. E aqueles que forem pegos com a boca na
botija, devastando a Amazônia, entrarão numa nova Lista Suja.
Infelizmente,
ainda vai levar um tempo até que sejam extirpadas todas as práticas ilegais que
acontecem em lugares recônditos do Brasil, onde o Estado não faz nem sombra, e
é historicamente incapaz de garantir direitos mínimos á população. A certeza de
impunidade é um dos principais alimentos da sanha desses produtores que não
medem esforços para lucrar mais e mais. Sujar seus nomes na praça tem se
mostrado a única saída para educa-los.
Carlos
Juliano Barros
Rolling
Stone Brasil, fev/2008
Em comemoração aos 10 anos do início do Jornal dos Pires, logo acrescentado o Rural, tonando-se Jornal Pires Rural, estaremos revendo algumas das matérias que marcaram essa década de publicações, onde conquistamos a credibilidade, respeito e sinergia com nossos leitores e amigos.
Quase sem querer iniciamos um trabalho pioneiro para a área rural de Limeira e região, fortalecendo e valorizando a vida no campo, que não é mais a mesma desde então…
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